NOTA DE FALECIMENTO – Criminólogo Roberto Bergalli

Hoje, 04 de maio de 2020, faleceu o Mestre de muitos entre nós, o professor e criminólogo Roberto Bergalli, aos 86 anos em Barcelona. Isso causa muita tristeza a todas as pessoas que tiveram sua formação marcada pelos seus ensinamentos.

Pensei em escrever uma nota sobre os preciosos ensinamentos do Professor, que dedicou grande parte de sua vida ao estudo da criminologia e do controle social punitivo na América Latina. Escreveu também muito sobre problemas da Europa, mas tinha um compromisso político e científico conosco, latinos, mesmo residindo, desde seu exílio, em Barcelona.

Preciso contar uma história que mostra a importância de Roberto Bergalli para a América Latina e acho que será a melhor forma de homenageá-lo. Em 1987-89 se realizava um dos primeiros cursos de pós-graduação em Criminologia critica na Espanha, em Barcelona, vinculado à Comunidade Européia (Common Study Programme on Criminal Justice and Critical Criminology). Bergalli fundou esse curso juntamente com Alessandro Baratta, Juan Bustos Ramirez, Jock Young e Louk Hulsmann. A versão espanhola do curso foi inicialmente ministrada na faculdade de direito da Universidade Autónoma de Barcelona. Ele se empenhou muitíssimo com esse curso. Era a oportunidade de difundir a criminologia critica e formar massa crítica de juristas com pensamento antagónico às ortodoxias doutrinárias.

Na América do Sul vivíamos uma fase de transição para a democracia. Eramos jovens e tínhamos a cabeça povoada de esperanças e também muita indignação contra um sistema de justiça penal que reproduzia a violência do Estado e reafirmava a exclusão social. E creiam-me, eram tempos difíceis. Tempos da Rota (paulistana) que matava dois civis para cada policial morto em serviço (eles diziam, “policiais em confronto”). Tortura e maus tratos eram comumente empregados nas delegacias de policia Brasil afora, apesar dos esforços que muitos faziam para combater tais práticas. Igualmente comum era também a cegueira do Ministério Público e da magistratura para tais práticas que alimentavam a “legalidade” do sistema de justiça penal.

Neste período, não tínhamos cursos de criminologia no Brasil. Além dos professores Nilo Batista e Juarez Cirino dos Santos, ninguém mais sabia no Brasil o que era “criminologia crítica. Bergalli conhecia muito bem essa realidade. Era um homem extremamente culto, cosmopolita e poliglota. Argentino, cursou direito na UBA e se doutorou em 1966. Estudou Criminologia em Cambridge em 1967, posteriormente estudou direito penal e Criminologia na Universidade de Roma. Também foi bolsista da Alexander von Humbolt-Stiftung na Colônia, onde obteve doutorado em Sociologia Criminal. Foi diretor científico do prestigioso Instituto Internacional de Sociologia do Direito Oñati (país Basco- Espanha). Bergalli foi perseguido político e passou por todas as arguras da ditadura militar em seu país, até ser exilado na Espanha.

Roberto, como carinhosamente muitos de nós o chamavam, era um profundo conhecedor das mazelas dos sistemas de justiça da América Latina. Consciente dessa realidade empenhou-se em organizar a versão espanhola do referido curso de máster no final dos anos de 1980, junto com o professor chileno (também exilado) Juan Bustos Ramirez. Ele começou a receber dezenas de estudantes latinos todos os anos. Era um compromisso político do qual ele nunca abriu mão. Foi neste período que tive a oportunidade de estudar com o professor Bergalli. Em uma turma de pouco mais de 20 alunos em 1988, 12 eram da América Latina e praticamente todos com bolsa de estudos. É incrível pensar que até uma consciência política do que significa ser latino americano este professor nos propiciou. Seguramente eram outros tempos e não se “flertava” com os regimes militares.

Roberto era um professor dedicado e não era nada fácil estudar com ele. Dizia que para enfrentar o sistema era preciso dominar o discurso científico. Poder se combate com domínio sobre o ‘poder”. Aprovar uma disciplina com ele exigia de nós um esforço hercúleo. Passei noites me preparando para os seus seminários. Depois do retorno de Juan Bustos Ramirez para o Chile, ele fez algumas alterações no programa do curso de Mestrado em Sistema Penal y Problemas Sociales e o levou para a faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, onde era professor concursado. Roberto Bergalli continuou formando estudantes latinos por mais de duas décadas. Fui a sua primeira aluna brasileira, mas não a última. Graças ao seu empenho muitas e muitos de nós, deste lado dos trópicos, tivemos acesso a um conhecimento inacessível ou mesmo “proibido” nos anos que se seguiram à ditadura militar. O processo de retomada da democracia foi perverso e a passo de cágado.

Nesse dia de dor interessa mais resgatar o perfil político e humanitário deste grande homem, talvez pouco conhecido do público afeito ao estudo de suas teorias sobre o controle social e o pensamento criminológico. Nos últimos anos o grande mestre, que publicou mais de 200 estudos, sobretudo na Europa e na América Latina, parou de escrever. Foi vítima de um Alzheimer que afetou sua capacidade de cognição. Porém, seu legado continua. Meus colegas de máster no final dos anos, hoje docentes na Espanha e em muitos países da América Latina beneficiaram-se de seu legado. Bergalli foi fonte de inspiração para o Manual de sociologia jurídica que escrevi ao retornar ao Brasil. Sua visão crítica sobre o controle social e o controle punitivo do sistema de justiça penal, formou dezenas de combatentes intelectuais, pessoas lúcidas e comprometidas com a construção de um mundo que incluísse a todas e todos.

Descanse em paz professor, fica aqui a infinita saudade e a justa homenagem da Criminologia brasileira nesta data, de uma tarde ensolarada desde uma janela reclusa, mas não fechada à reflexão.

Ana Lucia Sabadell

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